O mínimo que se pode dizer é que é difícil, quando se realiza um filme sobre um tema semelhante (os campos de concentração), não se fazer certas questões prévias; mas tudo se passa como se, por incoerência, tolice ou preguiça, Pontecorvo tivesse negligenciado resolutamente de se interrogar.
Por exemplo, a questão do realismo: por múltiplas razões, fáceis de compreender, o realismo absoluto, ou aquilo que pode tomar seu lugar no cinema, é aqui impossível; toda tentativa nessa direção é necessariamente inacabada (“logo imoral”), toda tentativa de reconstituição ou de maquiagem derrisória e grotesca, toda aproximação tradicional do “espetáculo” deriva do voyeurismo e da pornografia. O diretor fica encarregado de enfastiar, par que aquilo que ele ousa apresentar como a “realidade” seja fisicamente suportável pelo espectador – que só pode concluir, por conseguinte, talvez inconscientemente, que certamente era horrível, esses alemães, que selvagens –, mas finalmente não intolerável, e que, sendo bem esperto, com um pouco de astúcia ou paciência, seria possível livrar-se. Ao mesmo tempo, cada um se habitua sorrateiramente ao horror, isso entra pouco a pouco nos modos, e logo fará parte da paisagem mental do homem moderno; quem poderá, da próxima vez, se espantar ou se indignar com aquilo que terá deixado de ser chocante?
É nesse momento que se percebe que a força de Noite e Neblina [Nuit et Brouillard, Alain Resnais, 1956] vinha menos pelos documentos do que pela montagem, pela ciência com a qual os fatos brutos, reais, até, eram oferecidos ao olhar, num movimento que é justamente aquele da consciência lúcida, e quase impessoal, que não pode aceitar compreender e admitir o fenômeno. Pôde-se ver, aliás, documentos mais atrozes do que aqueles exibidos por Resnais: mas a que o homem não se pode habituar? Ora, não é possível habituar-se a Noite e Neblina; porque o cineasta julga o que mostra, e é julgado pela forma como mostra.
Outra coisa: andam citando bastante a torto e a direito, e muitas vezes de forma bastante tola, uma expressão de Moullet: a moral é questão de travellings (ou a versão de Godard: os travellings são uma questão de moral); quis-se ver aí o cúmulo do formalismo, quando antes se poderia criticar o excesso “terrorista”, para retomar a terminologia paulhaniana. Basta ver, entretanto, em Kapò, o plano em que [a atriz Emmanuelle] Riva se suicida, jogando-se sobre o arame farpado eletrificado; o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para, à frente reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo. Nos incomodam há alguns meses com os falsos problemas da forma e do conteúdo, do realismo e do feérico, do roteiro e da “mis-en-scène”, do ator livre ou dominado e outras pilhérias; digamos que todos os temas nascem livres e iguais em direito; o que conta, é o tom, ou a inclinação, ou a nuança, como se quiser chamar – ou seja, o ponto de vista de um homem, o autor, mal necessário, e a atitude que toma esse homem em relação àquilo que ele filma, e assim em relação ao mundo e a todas as coisas: o que pode se exprimir pela escolha das situações, a construção da intriga, os diálogos, o trabalho dos atores, ou a pura e simples técnica, “mesmo indiferentemente”. Existem coisas que só devem ser abordadas no temor e no terror; a morte é uma delas, sem dúvida; e como, no momento de filmar uma coisa tão misteriosa, não se sentir um impostor? Mais valeria em todo caso se questionar, e inserir essa interrogação, de alguma forma, naquilo que se filma; mas a dúvida é aquilo de que Pontecorvo e seus iguais estão mais desprovidos.
Fazer um filme é mostrar certas coisas, é ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostrá-las por um certo viés; esses dois atos são rigorosamente indissociáveis. Da mesma forma que não pode haver absoluto da mise-en-scène, pois não há mise-en-scène no absoluto, da mesma forma o cinema nunca será uma “linguagem”: as relações do signo ao significado não funcionam aqui, e só culminam em heresias tão tristes quanto as da pequena Zazie. Toda aproximação do fato cinematográfico que pretende substituir a adição à síntese, a análise à unidade, nos remete logo a uma retórica de imagens que não têm mais a ver com o fato cinematográfico quanto o desenho industrial com o fato pictórico; por que essa retórica permanece tão cara àqueles que se intitulam eles mesmos “críticos de esquerda”? – talvez, no fim das contas, estes sejam antes de tudo irredutíveis professores; mas se nós sempre detestamos, por exemplo, Pudóvkin, de Sica, Wyler, Lizzani e os antigos combatentes do Idhec, é porque a realização lógica desse formalismo se chama Pontecorvo. Pensem o que pensarem os jornalistas diários, a história do cinema não entra em revolução a cada oito dias. A mecânica de um Losey, a experimentação novaiorquina não fazem com que ela se mexa mais do que as ondas da greve fazem com a paz das profundezas. Por quê? É que uns só se fazem questionamentos formais, enquanto os outros os resolvem no começo ao não fazer questionamento nenhum. Mas o que dizem aqueles que fazem verdadeiramente a história, e que também chamamos “homens da arte”? Resnais confessará que, se tal filme em cartaz interessa seu lado espectador, é no entanto diante de Antonioni que ele tem o sentimento de ser apenas um amador; da mesma forma Truffaut falaria sem dúvida de Renoir, Godard de Rossellini, Demy de Visconti; e como Cézanne, contra todos os jornalistas e cronistas, foi pouco a pouco imposto pelos pintores, da mesma forma como os cineastas impõem à história Murnau ou Mizoguchi...
Jacques Rivette (Cahiers du Cinéma 120) – Tradução de Ruy Gardnier (Revista Contracampo – www.contracampo.com.br)
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário